Coluna Treinamento Desportivo: o ciclo vicioso de ignorância sobre a concussão em esportes de combate; entenda

Coluna Treinamento Desportivo: o ciclo vicioso de ignorância sobre a concussão em esportes de combate; entenda

Neste artigo, convidamos Bruno Follmer – Membro do Rehabilitation Neuroscience Laboratory, University of Victoria no Canadá – para escrever sobre os equívocos perigosos que se repetem dentro do ringue.

Apagar as luzes. Ver estrelas. Tomar uma em cheio. Estas são expressões comuns usadas ​​para descrever o contato com a cabeça que pode levar à concussão. Elas são usadas ​​de uma maneira que não é positiva e nem útil, e ainda minimizam a importância e o perigo de lesões cerebrais. Essas frases enfatizam a falta de entendimento que muitos têm sobre a gravidade da chamada “lesão cerebral traumática leve” – ​​a concussão. Elas ajudam a alimentar o espírito de: “Por que devemos nos importar? Os lutadores não tentam dar concussões um ao outro?”

A transferência de conhecimento de uma geração para a seguinte ocorre naturalmente, de professor para aluno, do mestre para o aprendiz, ou treinador para atleta. Aprender diretamente daqueles que vieram antes de nós e depois compartilhar esse conhecimento com outras pessoas pode ser um meio eficaz de transmitir informações. Embora essa forma de comunicação seja freqüentemente essencial e benéfica, também pode exacerbar conceitos errôneos e perpetuar evidências incorretas.

No esporte, a relação treinador-atleta envolve educar e treinar a próxima geração. Esse relacionamento pode ser especialmente forte e poderoso nos esportes de combate, mas é problemático quando se trata de concussão. A definição consensual de concussão relacionada ao esporte é “uma lesão cerebral traumática induzida por forças biomecânicas”. De acordo com essa definição, a lesão concussiva na cabeça pode:

  • ser causada por um golpe direto na cabeça, rosto, pescoço ou em outro lugar do corpo com uma força impulsiva transmitida à cabeça;
  • resultar no rápido início de comprometimento de curto prazo da função neurológica que se resolve espontaneamente (mas pode evoluir ao longo de horas);
  • resultar em alterações neuropatológicas, mas os sinais e sintomas clínicos agudos são em grande parte um distúrbio funcional e não uma lesão estrutural e não podem ser visualizados com eficácia;
  • produzir sinais e sintomas clínicos que podem ou não envolver perda de consciência.

Portanto, lesões concussivas não requerem contato exclusivamente na cabeça, produzem prejuízos que surgem rapidamente e geralmente são breves, não podem ser vistas com exames de imagem convencional, e não necessariamente envolvem perda de consciência. 

Mas as pessoas que praticam esportes de combate, onde o risco de concussão é bastante alto, realmente sabem disso? Recentemente, publicamos um estudo chamado ‘Entendendo o conhecimento e o comportamento sobre concussão entre atletas e treinadores de MMA, Boxe, Kickboxing e de Muay Thai’ na revista The Physician and Sports Medicine. Descobrimos que, para dois terços dos atletas, seus treinadores eram o principal meio de obter conhecimento sobre concussões. Os treinadores disseram que confiavam principalmente em outros treinadores para coletar e compartilhar informações.

De maneira alarmante, 86% dos treinadores declararam que “nunca” ou apenas “às vezes” buscam informações para aumentar seu conhecimento sobre lesões na cabeça. A realidade de que quase todos os treinadores são ex-atletas, e que muitos atletas já estavam trabalhando como treinadores, expõe um padrão cíclico de conhecimento de concussão no qual os atletas confiam em treinadores mal informados e, por sua vez, se tornam treinadores mal informados. Essa ignorância fica presa em um ciclo vicioso e nunca escapa.

A transmissão de informações corretas é essencial ao lidar com as graves conseqüências e (potencialmente) incapacitantes da concussão. Nosso estudo demonstra que os lutadores são expostos a traumas na cabeça em simulações de luta, ou nas chamadas sessões de sparring, normalmente duas vezes por semana. Somente essas informações deveriam ser suficientes para dedicar atenção extra aos riscos que esses atletas enfrentam. Os profissionais de saúde raramente estão presentes durante o treinamento, os treinadores têm lacunas significativas no conhecimento e não estão familiarizados com as ferramentas de avaliação de concussão, e os atletas geralmente não relatam sintomas para evitar a remoção da prática ou competição. Isso mostra a importância de espalhar informações confiáveis ​​sobre conhecimento, avaliação e sobre o manejo de lesões na cabeça em esportes de combate.

Um membro do nosso laboratório que está diretamente envolvido na comunidade profissional de esportes de combate viu em primeira mão que atletas e treinadores de esportes de combate pensam que a perda de consciência é um pré-requisito para concussão. Isso é um mito: a perda de consciência pode ou não ocorrer em um incidente concussivo. Ele se lembra de uma interação em particular com um lutador. Este atleta ficou ferozmente inconsciente e afirmou que agora poderia participar de nosso estudo já que, finalmente, sofreu sua primeira concussão. Mas ele já tinha muitas outras concussões de acordo com definições apropriadas!

Muitos atletas de esportes de combate, como o deste relato e os do nosso estudo, acreditam que uma lesão grave é necessária para produzir concussão. Em nosso exemplo, o atleta também era um treinador, em cuja função ele provavelmente considera a ocorrência de concussão entre seus alunos pelas mesmas lentes e provavelmente está passando esse equívoco para a próxima geração de atletas. Alguns destes, por sua vez, se tornarão treinadores. E assim, este ciclo vicioso se perpetua dentro do ringue.

Outro equívoco importante identificado em nosso estudo foi o nível de lesão cerebral que uma concussão representa. Muito poucos atletas e treinadores entenderam corretamente que uma concussão representa uma lesão traumática leve. Curiosamente, os atletas que acreditavam que uma concussão representa uma lesão cerebral grave relataram participar de mais sessões de treino por semana e menos deles indicaram que sofreram uma concussão no ano passado em relação àqueles que entenderam o nível real de gravidade que uma concussão representa. Isso nos mostra como a educação de conceitos básicos pode ajudar. O entendimento do nível de lesão cerebral que uma concussão representa levou a um comportamento mais seguro e, provavelmente, a uma percepção mais realista da ocorrência de concussão. Portanto, grandes mudanças parecem ser possíveis através de pequenas etapas.

No entanto, o ciclo vicioso de transferência de conhecimento incorreto e atitudes perigosas em relação à concussão pode ser difícil de ser quebrado. Em nosso estudo, os treinadores declararam que a literatura científica não é fácil de acessar ou interpretar. O uso de vídeos educacionais curtos, programas de aprendizado baseados em computador e infográficos direcionados a um público leigo foram apontados como as formas ideais de comunicação solicitadas pelos treinadores de esportes de combate. Essas estratégias representam o conceito de tradução do conhecimento, um processo de estratégias dinâmicas e interativas usadas para melhorar a comunicação entre pesquisadores e os usuários do conhecimento. Como cientista, pesquisador e artista marcial, eu acredito que é importante reconhecer que meios educacionais alternativos devem ser produzidos para se comunicar efetivamente com diferentes públicos. 

Uma cadeia de informações imprecisas tem maior probabilidade de se reforçar ao invés de se corrigir quando são passadas de uma geração para a outra. As crenças são difundidas e as pessoas aderem às idéias que as tornam confortáveis. Um esforço coletivo é necessário! Ao espalhar informações acessíveis sobre concussões que promovem boas práticas, esperamos que um ciclo vicioso de ignorância possa se tornar um ciclo virtuoso de conhecimento.

Recomendações
Quando o assunto é concussão em esportes de combate, atletas confiam em treinadores e treinadores confiam em outros treinadores. Atletas e treinadores devem buscar fontes confiáveis para obter conhecimento em concussão. Pesquisadores e especialistas devem comunicar a ciência e o conhecimento de forma acessível ao seu público alvo. Um esforço coletivo é necessário para que os esportes de combate tornem-se mais seguros e a saúde dos atletas seja preservada. Cada impacto é relevante, e mesmo o entendimento de conceitos básicos pode fazer a diferença. 

Autor correspondente: Bruno Follmer

Rehabilitation Neuroscience Laboratory, University of Victoria, Victoria, BC, Canada
E-mail: [email protected]
Instagram: @brunofollmer

Referências:

Follmer B, Varga AA, Zehr EP. Understanding concussion knowledge and behavior among mixed martial arts, boxing, kickboxing, and Muay Thai athletes and coaches. The Physician and Sportsmedicine. 2020:1-7. doi:10.1080/00913847.2020.1729668

Follmer B, Dellagrana RA, Zehr EP. Head Trauma Exposure in Mixed Martial Arts Varies According to Sex and Weight Class. Sports Health. 2019:11(3):280-285. doi:10.1177/1941738119827966

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