Série assédio nos tatames – parte 1: Cláudia do Val critica ‘abuso’ da hierarquia e avisa pais de crianças

Série assédio nos tatames – parte 1: Cláudia do Val critica ‘abuso’ da hierarquia e avisa pais de crianças

* Tema muito importante, o assédio nos tatames infelizmente ainda é uma realidade e cabe a nós, professores, praticantes e fãs de Jiu-Jitsu, dar a ele sua devida importância. No Brasil, onde uma mulher é estuprada a cada 10 minutos – segundo Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública -, o debate se faz ainda mais necessário, ultrapassando a barreira do esporte, como em casos de assédio sexual ou moral.

Nesta série de artigos, vamos explicar não apenas o que significa o assédio nos tatames, mas como combatê-lo, e a partir do depoimento de diversas atletas da arte suave, dar voz para mulheres que sofreram com o problema colocarem o assunto em evidência.

Mas afinal, o que é assédio? O assédio pode ser configurado como condutas abusivas exaradas por meio de palavras, comportamentos, atos, gestos e escritos que podem trazer danos à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo o seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho. Geralmente, acontece por parte de alguém em posição privilegiada que usa dessa vantagem para obter favores de um subalterno.

Na parte 1, nossa entrevistada é a faixa-preta Cláudia do Val, tricampeã mundial de Jiu-Jitsu e uma das grandes competidores da sua geração, mas que também conviveu com o assédio nos tatames. Para ela, o “abuso” da hierarquia por parte de alguns professores é uma das causas do problema.

“Um dos maiores problemas é o ‘endeusamento’ de professores. Vejo muitas academias tratando o professor como uma figura quase divina, que não peca e não erra. É colocado num pedestal (não só o professor, como faixas-preta também). Tem uma ‘cultura’ quase como se fosse uma seita de adoração ao mestre e ao faixa-preta. Isso certamente contribui para que o assédio sexual e também moral ocorram”, disse Do Val, que continuou:

“Outro grande problema que eu vejo é uma espécie de ‘lei’ onde não se pode dizer não ao faixa-preta. Essa ‘lei’ deveria existir somente dentro do tatame (o que eu já acho um absurdo), mas alguns faixas-preta abusam dela fora do tatame, e isso certamente contribui para que o abuso aconteça. Então, as academias não deveriam permitir que ninguém utilizasse dessa hierarquia para mandar no outro. Cabe ao mestre não permitir esse abuso de poder e aos alunos se posicionarem, não frequentando academias onde não são tratados com o devido respeito”.

Assédio nos tatames: assunto será tema de série e estreia com Do Val (Foto reprodução Instagram)

Assédio nos tatames: assunto será tema de série e estreia com Do Val (Foto reprodução Instagram)

Confira outros trechos da entrevista com Cláudia do Val sobre assédio nos tatames:

– Além das mulheres, as crianças também estão em maior número na lista de vítimas de assédio e/ou abuso no mundo. Como você vê essa situação dentro do Jiu-Jitsu?

R: Essa é uma situação que eu acho delicada de falar, mas infelizmente os pais não deveriam confiar cegamente em professores e nem confiar seus filhos pequenos sozinhos nas mãos de qualquer professor. Teve um caso muito famoso nos Estados Unidos de um professor que conhecia a aluna desde os 10 anos de idade e era amigo da família, mas quando ela completou 15 anos, começaram os abusos. Esse não é um caso isolado, acontece demais. Sei que existem inúmeros professores excelentes, que jamais fariam algo assim, mas para evitar um trauma pelo resto da vida do seu filho ou sua filha, evite deixar uma criança sozinha com qualquer adulto que seja.

– Que dicas você daria para pais de crianças que treinam Jiu-Jitsu?

R: Então, acho importante reforçar para os pais que não se deve ter essa confiança cega em ninguém. O ideal é nunca deixar uma criança sozinha com um adulto, nem mesmo quando você conhecê-lo bem. Óbvio que não são todos adultos que vão tirar vantagem, lógico que tem muito professor extremamente confiável, mas por segurança é melhor prevenir e não deixar essas situações acontecerem.

– O assédio moral é o mais comum nos tatames? Como ele se manifesta no Jiu-Jitsu?

R: Muitos faixas-preta se acham numa hierarquia superior aos outros e chegam a humilhar, destratar um faixa colorida. Um exemplo de onde já treinei é que tinha um cara, um faixa-preta, ele montado em um faixa colorida durante um rola, vira pra outro faixa colorida e diz ‘aí, me dá essa água’, sendo que a água era do atleta embaixo dele.

– Acredita que a falta de punições adequadas colabora para que casos de assédio e/ou abuso continuem acontecendo? E em relação aos praticantes e fãs?

R: Sim (a lei poderia ser mais severa). Além disso, o pessoal tinha que parar de dar palco e admirar quem já é conhecido por ter abusado ou protegido abusadores. Sei de vários casos de pessoas conhecidas por terem abusado ou protegido alguém, e a galera continua sendo fã, fechando os olhos e separando o atleta da pessoa. Só que não existe isso, é a mesma pessoa. Acho que a galera esquece das coisas muito rápido, elas estão dispostas a se fazerem de cegas quando se trata de um ‘ídolo’.

> ATENÇÃO

Se você presenciar ou for vítima de qualquer tipo de assédio, denuncie (Disque-180)! Uma pesquisa divulgada pela Organização Internacional de Combate à Pobreza (ActionAid) mostra que 86% das mulheres brasileiras ouvidas sofreram assédio em público nas suas cidades (saiba mais em www.agenciabrasil.ebc.com.br). Na próxima semana, nossa convidada será a lutadora e professora Aline Krisner.

  • Artigo por Bruno Carvalho