Série assédio nos tatames – parte 3: referência no tema, Luciana Neder ensina formas de combate
* Na terceira parte da série “assédio nos tatames”, voltamos a tratar desse tema que infelizmente ainda é uma realidade e cabe a nós, professores, praticantes e fãs de Jiu-Jitsu, dar a ele sua devida importância. Vamos explicar não apenas o que significa o assédio nos tatames – seja ele sexual ou moral -, mas como combatê-lo, e a partir do depoimento de diversas atletas da arte suave, dar voz para mulheres que sofreram com o problema colocarem o assunto em evidência.
A primeira personagem desse especial foi a tricampeã mundial de Jiu-Jitsu, Cláudia do Val. Em seguida recebemos a faixa-preta brasileira – radicada no Havaí – Aline Krisner. Agora, nossa convidada para falar sobre assédio nos tatames é a professora – e especialista – Luciana Neder.
- Série assédio nos tatames – parte 1: Cláudia do Val critica ‘abuso’ da hierarquia e avisa pais
- Série assédio nos tatames – parte 2: Aline Krisner relata ‘perseguição’ de esposas à mulheres
Mestranda em Estudos Socioculturais e Comportamentais do Movimento Humano e faixa-preta 3° grau, Luciana Neder foi a primeira professora de Jiu-Jitsu a sair do Brasil com a difícil missão de ensinar arte suave para meninas mulçumanas nas escolas públicas dos Emirados Árabes Unidos, sendo promovida a supervisora no Ministério de Educação, onde criou um projeto político pedagógico de ensino de Jiu-Jitsu escolar. É também fundadora e presidente da Comissão de Direitos das Mulheres no Jiu-Jitsu, organização sem fins lucrativos e a principal instância de negociação, observância e monitoramento dos direitos das mulheres praticantes, além de idealizadora do selo Women Friendly, aprovado pela UN Women (ONU Mulheres).
Confira abaixo a entrevista com Luciana Neder sobre assédio nos tatames:
– Durante sua trajetória no Jiu-Jitsu, você já sofreu algum tipo de assédio nos tatames, seja sexual ou moral?
R: Infelizmente, eu já sofri todos os tipos de assédio no Jiu-Jitsu, seja sexual, moral ou psicológico, além de quase todos os tipos de sistema de opressão como: gaslighting, bropriating, mansplanning, manterrupting. O esporte é o espelho da sociedade que vivemos: machista, preconceituosa, patriarcal e desigual. As mesmas preocupações que afligem a sociedade em geral também afetam o meio esportivo. O esporte não está numa bolha, e o Jiu-Jitsu, mesmo sendo uma ferramenta de desenvolvimento humano incrível, não seria diferente. E, por ser um esporte de contato, amplifica valores machistas como o culto à virilidade do homem e a erotização dos corpos das mulheres no ambiente esportivo.
Eu tinha 15 anos quando sofri abuso sexual de um aluno faixa-branca durante o rola. O abusador me chamou de maluca, praticando o gaslighting, quando eu imediatamente reclamei com o professor, que ficou totalmente desconsertado e sem saber o que fazer com a situação. Uma menina de 15 anos saiu da academia achando que estava realmente maluca, que não deveria estar naquele local, que o Jiu-Jitsu não é para mulheres… Eu só não abandonei o esporte porque eu conheci meu professor, que tinha uma turma só de meninas, e foi onde eu consegui me desenvolver ate a faixa preta. Várias vezes tive a fala interrompida, fui intimidada e até tive um projeto roubado.
– Já presenciou algum caso de assédio nos tatames com outras parceiras de treino?
R: Já presenciei uma cena horrorosa de um professor com uma aluna, que era minha amiga, num campeonato! Ela estava perdendo a luta, e ele gritando pra ela virar de quatro apoios, e em um momento ele se irritou e gritou: ‘Para dar essa buc***, você vira de quatro’. Eu fiquei super chocada com a situação, e me marcou demais! Eu era muito nova, não tinha menor noção sobre machismo e essas violências, e fiquei totalmente sem saber o que falar, muda! Horrível! Já vi também plateia em campeonato gritando ofensas horrorosas para mulheres árbitras.
– O que você acha que favorece o assédio nos tatames dentro das artes marciais?
R: A desigualdade de gênero, sem duvidas! O machismo (que potencializa violências contra as mulheres) está relacionado a desigualdade social. Quanto mais desigual uma sociedade, mais violações de direitos teremos. No caso do Jiu-Jitsu, a desigualdade de gênero é absurda e reflete diretamente nas principais questões do Jiu-Jitsu feminino: desvalorização, preconceito, assédios, violência, invisibilidade, falta de empregabilidade, e muitas outras. Desde 2019 eu tenho participado frequentemente em audiências publicas da Câmara dos Deputados, em Brasília, expondo o panorama da violência contra a mulher nas lutas e artes marciais, e cobrando uma ação enérgica dos parlamentares.
Lutadores condenados por crimes como estupro, assédio, abuso, agressão e violência doméstica precisam sofrer sanções nas entidades federativas. Os atletas, professores e investidores também têm seu papel na cobrança enérgica dessas medidas, afinal são eles que perdem diretamente suas alunas e clientes com o aumento de crimes cometidos por lutadores.
– Qual seria a melhor forma de combater essa prática?
R: Uma estratégia para desenvolvimento da categoria feminina está relacionada a criação de uma cultura que dê visibilidade à presença feminina no Jiu-Jitsu. O cenário é complexo e exige iniciativas de vários atores, como as entidades, federações, poder público e imprensa. As transmissões dos eventos, a divulgação das trajetórias das jogadoras, a venda de produtos esportivos para mulheres, a ocupação da mulher no esporte desde atleta a dirigente, são algumas das frentes que precisam ser urgentemente implementadas com vistas a tornar a modalidade mais conhecida como um espaço de empoderamento, socialização, educação e renda de mulheres.
O reconhecimento da desigualdade em relação ao Jiu-Jitsu masculino é o primeiro passo a ser dado, e toda mudança requer investimento e resistência. É necessário lutar e muito para que as mulheres tenham condições menos desiguais no esporte, em especial no BJJ. Vivemos em um país no qual as mulheres são alvo de violências diversas. Não podemos analisar o Jiu-Jitsu distante dessa realidade, até porque casos de violência contra mulher envolvendo lutadores são frequentes, e influenciam diretamente na iniciação da mulher no esporte. A CDMJJ, em seus 3 pilares, consegue:
Educação – capacitar profissionais para atender mulheres, pessoas com deficiências e a comunidade LGBTQIAP+, campanhas educacionais e cursos
Proteção – criação de uma politica de prevenção e enfrentamento à violência contra a mulher, com sanções eficientes
Valorização – promover o Jiu-Jitsu para mulheres, pessoas com deficiências e a comunidade LGBTQIAP+, criando programas de incentivo e inclusão
– Você acha que a mídia esportiva presta a devida atenção aos casos que ocorrem no Brasil?
R: Acredito que um dos papéis da imprensa é falar sobre as ocorrências de violência contra mulheres no Jiu-Jitsu. Não é sobre acusar ou tomar um lado, mas sobre expor os fatos, trazer provas, depoimentos e investigar. Sabemos que o assédio sexual não é algo exclusivo do BJJ e o esporte não ensina isso de maneira alguma, mas é algo cultural e precisamos educar as pessoas em relação a este problema. Também não é algo que acontece exclusivamente em uma equipe. Por isso, precisamos da imprensa para chegar a uma resolução e para mostrar que criminoso não tem vez!
Mas o que tenho presenciado é uma imprensa que protege pessoas por conta da posição que elas se encontram no Jiu-Jitsu. Os crimes precisam ser investigados e medidas precisam ser tomadas.
– Considerações finais
R: Quando uma mulher denuncia um assédio, abuso, ou mesmo um estupro, ela sofre violência em dobro. Vão questionar suas vestimentas, sua conduta, o horário em que ela estava na rua, vão minimizar seu relato, questionar sua palavra, dizer que ela quer aparecer… E isso vai acontecer em todas as instâncias, do ambiente doméstico, profissional à delegacia, passando pelo hospital, e também no esporte…
As pessoas acreditam que um abusador tem uma cara, que ‘parece’ um criminoso, que tem antecedentes. Mas não é assim! O agressor trabalha, tem uma boa reputação, paga impostos. Quando a mulher expõe a violência, tem dificuldade de encontrar testemunhas. Os amigos do criminoso dizem que é uma ótima pessoa, bom profissional, bom colega de trabalho. A palavra dela acaba sendo desacreditada. As pessoas não conseguem relacionar aquele cara gente boa, bom amigo, com um agressor, então é como se ela estivesse mentindo, exagerando! Essa estereótipo de ‘criminoso’ é um preconceito.
Normalizar a erotização no esporte, e culpar a mulher por ser o pivô dessa situação é péssimo para o desenvolvimento do BJJ, em especial para a categoria feminina. O JJ e um dos esportes mais bonitos e perfeito para a mulher praticar. Se você, mulher, nunca sofreu um assédio no esporte, pode sentir-se privilegiada, mas não se pode medir a régua dos outros pela sua. Seja empática com a dor da outra.
A Mayara Munhos, uma grande amiga jornalista, identificou que, das 259 mulheres perguntadas, 159 (61,6%) já sofreram assédio nas aulas de Jiu-Jitsu. Outras 48,4% declararam conhecer pessoas próximas que também sofreram assédio. Ainda nessa pesquisa, 34,1% das mulheres relataram ter sofrido assédio do professor, e 50,4% sofreram assédio de amigos de treino. Em parceira com o Jiu-Jitsu in Frames, da Mayara, estamos fazendo uma pesquisa mais abrangente no para sabermos as causas da grande evasão de mulheres do nosso esporte, mas é bem provável que uma delas seja o alto índice de assédio nas escolas de Jiu-Jitsu.
> ATENÇÃO
Se você presenciar ou for vítima de qualquer tipo de assédio, denuncie (Disque-180)! Uma pesquisa divulgada pela Organização Internacional de Combate à Pobreza (ActionAid) mostra que 86% das mulheres brasileiras ouvidas sofreram assédio em público nas suas cidades (saiba mais em www.agenciabrasil.ebc.com.br). E fique ligado para a convidada da próxima semana.
- Artigo por Bruno Carvalho