Série assédio nos tatames – parte 2: Aline Krisner relata ‘perseguição’ de esposas de professores à mulheres

Série assédio nos tatames – parte 2: Aline Krisner relata ‘perseguição’ de esposas de professores à mulheres

* Na segunda parte da série “assédio nos tatames”, voltamos a tratar desse tema que infelizmente ainda é uma realidade e cabe a nós, professores, praticantes e fãs de Jiu-Jitsu, dar a ele sua devida importância. Vamos explicar não apenas o que significa o assédio nos tatames – seja ele sexual ou moral -, mas como combatê-lo, e a partir do depoimento de diversas atletas da arte suave, dar voz para mulheres que sofreram com o problema colocarem o assunto em evidência.

A primeira personagem da série foi a tricampeã mundial de Jiu-Jitsu, Cláudia do Val. E para essa sequência, recebemos a faixa-preta brasileira Aline Krisner, professora e competidora, e que atualmente mora no Havaí. Dona de títulos como o Mundial Master, PanAmericano e Brasileiro No-Gi, Aline começou falando sobre como o ambiente de muitas academias no Brasil pode ser nocivo para mulheres.

“Isso acontece inúmeras vezes. O ambiente do Jiu-Jitsu pode ser muito nocivo para mulheres, de desconforto. Lembro da primeira vez que ouvi algo que me marcou profundamente, quando eu ainda era faixa-azul, na primeira academia que treinei. Eu tinha acabado de perder um filho com o meu namorado na época e o professor falou, no meio da aula e na frente de todos, que eu não sabia de quem era o filho. Eu era bem novinha, tinha 19 anos e voltado a praticar Jiu-Jitsu para me curar da depressão que essa gravidez interrompida causou. Mas depois que eu ouvi isso, nunca mais volta naquela academia. É uma situação bastante desagradável e também um assédio, que se apresenta de várias formas”.

Confira outros trechos da entrevista com Aline Krisner sobre assédio nos tatames:

– O tipo mais comum de assédio nos tatames é o de homens com mulheres, porém também existe o contrário. Como você observa fatores externos à academia contribuindo nesse sentido?

R: Um tema recorrente em todas as partes do mundo, mas que quase ninguém comenta e é sufocado pela comunidade: existem esposas de professores que não gostam de Jiu-Jitsu, mas por suas inseguranças, ao invés de construírem a própria carreira, buscam uma posição de gerenciar a academia do marido para vigiar e muitas vezes infernizar a vida das alunas. O raciocínio de uma esposa de professor insegura que não gosta de Jiu-Jitsu é que as mulheres só podem estar ali por causa dos homens. E como o mestre é a figura principal, consequentemente estão por causa dele.

Tive minha mensalidade descontada 2x numa academia no mesmo mês, onde todos os outros atletas de competição nem pagavam mensalidade. E na época eu trouxe os melhores resultados no pouco tempo que fiquei lá. Senti um ambiente hostil para mulheres onde a academia tinha mais de 10 anos e não formava nenhuma campeã. O professor também não me dava coach nas poucas competições que disputei. Depois ouvi diversas histórias de esposas prejudicando atletas mulheres por crises de ciúmes e insegurança. É uma cadeia de abusos que muitas vezes destrói as chances de mulheres se tornarem grandes atletas.

– Como você vê a melhor forma de dar treinos para o público feminino e masculino juntos? Ou é melhor haver uma separação das turmas?

R: Eu proporciono um espaço separado para mulheres (e crianças) na minha escola baseado em tudo que já sofri e passei inúmeras vezes dentro de um tatame. Eu costumo dizer que minhas alunas têm sorte porque não conseguem nem imaginar nenhum tipo de assédio num espaço feminino. Sinto também que o nível de entrega na aula é maior, e tive até que aumentar o tempo das aulas por causa dessa entrega justamente por se sentirem confortáveis.

Aline com turma feminina de Jiu-Jitsu no Havaí (Foto reprodução Instagram)

Aline com turma feminina de Jiu-Jitsu no Havaí (Foto reprodução Instagram)

– Caso não seja possível abrir uma turma feminina diante da baixa quantidade de alunas, por exemplo, qual seria sugestão para evitar casos de assédio?

R: Criação de programas de Jiu-Jitsu feminino como o que eu tenho na academia e uma reeducação por parte dos profissionais. Tenho ouvido os podcasts da Kyra (Gracie) e da Cesalina, onde a Kyra frisa que professor não pode sair com aluna. Os profissionais estão carregando conceitos arcaicos machistas. Do mesmo jeito que a ideia do ‘creonte’ está sendo derrubada e o aluno pode treinar onde se sente bem e visitar academias, o jeito de um professor tratar uma aluna precisa ser reformulado para que os alunos também se adequem com mais respeito. A maneira de se abordar um homem é diferente de se abordar uma mulher.

O ser humano é complexo e o profissional precisa ter esse senso de responsabilidade para agregar pessoas e não afastar as mulheres de sua academia, orientar os instrutores. Se o número de mulheres aumentar, o número de faixas-preta aumentará e o de academias lideradas por mulheres, como a minha, também. Esse comportamento (assédio nos tatames) precisa ser banido, não tem a ver com os princípios de honra e respeito das artes marciais. Foi contaminado por veteranos do machismo, relacionamentos abusivos e a cultura do estupro do homem brasileiro. Vale ressaltar ainda os casos de pedofilia, porque o número de assédio em alunas menores de idade é gigante.

> ATENÇÃO

Se você presenciar ou for vítima de qualquer tipo de assédio, denuncie (Disque-180)! Uma pesquisa divulgada pela Organização Internacional de Combate à Pobreza (ActionAid) mostra que 86% das mulheres brasileiras ouvidas sofreram assédio em público nas suas cidades (saiba mais em www.agenciabrasil.ebc.com.br). E fique ligado para a convidada da próxima semana.

  • Artigo por Bruno Carvalho